Hoje eu acordei sem o despertador. Dia enrolarado, sol já queimando a pele. Vou soltar as cachorras e tem cocô na entrada do portãozinho. Respiro fundo - tá tudo bem, a Holly não controla o cocô - e peço para elas sentarem. Se conseguir evitar a agitação, consigo fazer com que nenhuma das duas pise no cocô. Solto elas e respiro aliviada - crise gerenciada. Entro na área de serviço para limpar o cocô e surpresa! A Holly também fez xixi fora do tapete higiênico - e dessa vez ela nem tem uma desculpa. E então meu copo transborda. Minha mente começa a funcionar loucamente, eu praticamente estou numa sessão de terapia comigo mesma. Penso penso penso penso e eu nem consigo olhar para elas, de tanta raiva e mágoa. Meu marido levanta e um abraço é só o que preciso para começar a chorar.
Há muitos anos, tipo uns 10 anos atrás, me bateu uma vontade muito louca de ter filhos. Naquela época eu era uma escritora assídua, se fuçar um pouco posso até achar uma referência sobre o assunto. Estava na faculdade e de repente nada importava, eu podia largar tudo e criar uma criança. Não lembro como - ou porquê - essa vontade passou. Depois disso eu só lembro de como eu nunca queria ter filhos. Deve ter sido mais ou menos quando fomos morar juntos e nos estabilizamos na vida. E a negação era tão grande que eu já tinha a lista pronta na minha cabeça:
- E se meu filho nascer com alguma deficiência?
- E se eu tiver um ciúme absurdo da criança e não deixar ninguém chegar perto?
- E se eu tiver depressão pós-parto e rejeitar a criança?
- E se eu e meu marido não concordarmos sobre a forma de criação e nos separarmos?
- E se a gente fizer tudo certo e ainda assim ele se tornar um ser humano horroroso?
Já sabendo que perfeição não existe, geralmente considero a minha vida o mais perto da perfeição quanto uma vida pode chegar. Eu tenho tudo que quero e tudo que preciso. Tenho uma família - marido e duas cachorras, amigas, tenho casa, carro, trabalho estável e bem remunerado. Faço exercícios, tenho meus hobbies, considero-me muito feliz. E se um filho vier estragar tudo isso? E se a minha vida está tão boa, mas tão boa, que não tem como melhorar?
Quem conhece a história da minha vida, contada por mim mesma, sabe que tudo foi encaixado certinho, mas tão certinho que não tem como não acreditar em providência divina. É um discurso meio longo, então essa é uma conversa à parte dessa aqui. E se Deus me deu tudo isso assim, de bandeija, sem grandes provações no caminho, quem garante que não é tendo um filho que vou pagar todos os meus pecados? Acho que esse é o argumento que mais pesa. É o medo de perder tudo.
Só que, de um tempo pra cá, eu venho sendo bombardeada com esse assunto - filhos - e sinto uma mudança lenta nessa resistência toda. Já não é nunca, é um talvez quem sabe daqui a vários anos. Começa com minha irmã sonhando que eu tinha uma filha, e dizendo que já tem uma criança esperando pra nascer na minha família e se eu não tiver filhos vou estar impedindo essa alma de viver. Depois vem uma sessão de alinhamento energético e diz que esse meu medo de ter filhos - sem contextualização prévia até onde eu saiba - tem a ver com os mil abortos que fiz em vidas passadas. Já a numerologia do meu nome indica que a minha missão de vida é ter filhos, e enquanto isso não acontecer eu vou sair procurando coisas para cuidar. Nada sutil, né? E eu gosto de crianças. Nos encontros de amigas eu disputo os nenéns com as amigas. Mas se der algum problema é só devolver, né?
E pra completar a discussão, ou o desabafo, tem toda a crise com as cachorras. Dois anos atrás eu acordei e a Holly simplesmente não estava caminhando com as patas de trás. Isso foi numa sexta-feira, ela foi internada no mesmo dia, sábado levamos ela para fazer um exame, o que confirmou três hérnias de disco, e domingo ela fez a cirurgia e removeu as duas hérnias mais graves. Teve alta lá pela quarta-feira e nós não estávamos em casa, então quem cuidou dela foi a Denise - a tia Dê - que já tinha bastante experiência com resgate de animais com problemas e com certeza cuidou muito melhor do que nós. Quando ela voltou para casa, ainda não andava. Ia para fisioterapia 2x na semana, tínhamos que fazer exercícios para estimular as patas diariamente, ao mesmo tempo que tínhamos em casa outra cachorra cheia de energia querendo brincar com a irmã. Aos poucos ela voltou a caminhar, conseguiu controlar o xixi, mas nunca mais controlou o cocô. E hoje ainda agradeço diariamente por ser a única limitação dela, já que poderia ser muito pior. Mas desde esse episódio, eu e meu marido já brigamos infinitas vezes por discordarmos sobre como agir com as cachorras em determinadas situações. E as brigas acabavam porque não aguentávamos mais brigar, e não necessariamente porque concordávamos com o ponto de vista do outro. Então volta e meia o assunto volta e o esgotamento emocional também. Adicionem a esse drama uma Pit estressada e latindo absurdamente para qualquer barulho. Dá para entender porque o copo está cheio, né?
E como se a Holly não gerasse problemas suficientes, ela ainda é chata e mimada. Faz xixi fora do lugar porque quer. Faz xixi no tapete, faz xixi na cozinha, que escorre pro tapete, faz xixi correndo, dá mortal no sofá, enfim, ela não colabora. A vida com as cachorras se tornou quase insuportável. Então quando eu acordo e tem um xixi fora do tapetinho, é o suficiente para não querer olhar na cara delas.
Se eu chamar cachorro de filho, certamente vão aparecer pessoas aleatórias com discurso pronto e mil argumentos para dizer que não é a mesma coisa. E não é mesmo. Mas se eu já estou no inferno tendo só cachorro, imagina com filho? Aí vem uma voz e fala - mas o filho cresce e um dia você não precisa mais limpar a bunda dele. O único detalhe é que você se livra de uma coisa e ganha outras mil para se preocupar. Uma hora ou outra ainda consigo pensar que essa na verdade é a minha prova divina, e um filho não vai ser tão pior assim. Mas o que vivo agora já é o suficiente para não estar disposta a pagar pra ver esse pior.
Agora imagine que tudo isso passa pela minha cabeça naqueles dois minutos que estou limpando o xixi fora do lugar. E quando as lágrimas começam a cair, é basicamente porque estou orando: Deus, por favor, eu não quero filhos. Não me dê um e não me deixe esquecer os motivos pra isso.